Na manhã de sexta-feira (4.nov.2016), cerca de 10 viaturas da polícia civil invadiram a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema, São Paulo.
De acordo os relatos, os policiais chegaram por volta das 9h25, pularam o portão da Escola e a janela da recepção e entraram atirando em direção às pessoas que se encontravam na escola. Os estilhaços de balas recolhidos comprovam que nenhuma delas são de borracha e sim letais.
O MST repudia a ação da polícia de São Paulo e exige que o governo e as instituições competentes tomem as medidas cabíveis nesse processo. “Somos um movimento que luta pela democratização do acesso a terra no país e a ação descabida da polícia fere direitos constitucionais e democráticos”, diz a organização
Ato
No sábado, 5, cerca de 600 pessoas participaram de um ato na escola, em solidariedade aos estudantes e contra a escalada de violência e criminalização dos movimentos sociais. Entre os participantes estava o ex-presidente Lula.
Confira, abaixo, o relato da professora Silvia Beatriz, que leciona na escola
Muitas pessoas que sabem que sou professora da Escola Nacional Florestan
Fernandes me perguntam que aconteceu ontem, dia 4 de novembro, com a entrada da
polícia civil na sede de Guararema. Esta postagem é para responder a todas e
todos que me perguntam, preocupados: "Como foi?", "Por
quê?".
"COMO FOI?"
Às 9:45 de sexta feira, 4 de novembro, a policiais civis de Mogi das Cruzes
chegaram na portaria da escola em uma dezena de viaturas. Não possuíam mandado
de busca e apreensão, mas queriam entrar. Era realmente assustador, porque
estavam fortemente armados e o procedimento não estava dentro das normas
jurídicas. Os responsáveis pela portaria queriam ver o mandado. Então eles
apresentaram um documento que lhes enviaram pelo whatsapp, na tela de um
celular, sem assinatura de juiz.
Como os porteiros exigiam a apresentação de documentos para franquear a
entrada, eles tentaram quebrar a porta e, sem êxito, alguns entraram pela força
através da janela da portaria. Uma vez dentro da escola, apontaram as armas
para estudantes que estavam por perto. (Na hora estavam ocorrendo várias aulas
de diferentes cursos, entre eles, a da maestria do Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL, que é um
convênio entre a Escola Nacional Florestan Fernandes, a Via Campesina, a UNESCO
e a UNESP, no qual também leciono.)
O bibliotecário da escola, o professor Ronaldo, um senhor de 64 anos,
aposentado, vizinho de Guararema que contribui de maneira voluntária perdeu o
equilíbrio (ele sofre de mal de Parkinson) e se apoiou em um dos policiais que
estava do lado dele para não cair. Sempre acontece com ele, mas desta vez a
preocupação contribuiu, já que os policiais estavam apontando para o parquinho
na frente da ciranda infantil, onde filhas e filhos dos estudantes e
professores permanecem durante as aulas junto com pedagogos da própria escola.
O policial, simplesmente, derrubou ele no chão e algemou. Uma das musicistas
que estava na palestra sobre música popular que estava ocorrendo, como o músico
mineiro Lirinha, foi explicar para os policiais que o professor Ronaldo tinha
problemas de motricidade. Também foi reduzida e algemada. Para afastar as
pessoas que foram socorrer o aposentado no chão, os policiais atiraram com
balas de chumbo, e os estilhaços provocados por elas atingiram uma das mulheres
presentes. Ronaldo acabou com costelas quebradas pela violência com que foi
derrubado no chão.
Por uma das entradas alternativas da escola, que estava com cadeado, um
policial dizia para uma das auxiliares pedagógicas: "alguém vai sair morto
daqui" (isto foi filmado e circula nas redes sociais), configurando uma
clara ameaça. Assistindo os vídeos das câmaras de segurança da escola e os
tirados com celular podemos observar que a ação dos policiais, além de não
seguir os procedimentos legais de apresentação do mandado devidamente assinado,
foi bem atrapalhada. Por fim, a pessoa que eles procuravam, não acharam e nem
sequer era conhecida pelos responsáveis da escola.
Simultaneamente, em Sidrolândia, no estado de Mato Grosso do Sul, três
viaturas policiais, com placas do Paraná, entraram no Centro de Pesquisa e
Capacitação Geraldo Garcia (CEPEGE). Também sem mandado de busca e apreensão,
procuravam uma pessoa do estado de Paraná que não acharam na escola.
"POR QUÊ?"
Depois transcendeu que, tanto em Sindrolândia como em Guararema, as ações da
polícia estavam dentro da "Operação Castra" ("latifúndio",
em latim), que consistia em prender 14 lideranças de acampamentos Dom Tomás
Balduíno e Herdeiros da Luta pela Terra, da região central de Paraná. As
acusações vão desde "roubo de gado" e "cárcere privado" até
"associação criminosa". Esses acampamentos reúnem 3 mil famílias do
estado e a terra está em processo para destiná-la à reforma agrária. Era uma
área enorme que tinha sido indevidamente explorada pela empresa Araupel, uma
madereira que planta pinus para fazer pasta de celulose, um dos principais
commodities produzidos no estado, devido à riqueza aquífera da região. Mesmo já
sem posse efetiva da terra, a empresa vem retirando madeira da área. Funcionam
ali escolas itinerantes com uma infraestrutura em madeira, que atendem todas as
crianças e adolescentes acampados e as famílias já produzem alimentos para
atender as necessidades da população. Mesmo assim, sofrem sistemáticos
incêndios criminosos. E, no dia 7 de abril deste ano, um grupo de vinte
acampados do acampamento Dom Tomás Balduíno foi encurralado na área por
policiais militares junto com seguranças da empresa Araupel, que dispararam 120
tiros, segundo o laudo posterior, e mataram os camponeses Vilmar Bordim e
Leomar Orback. Detalhe, em 1997, seguranças da mesma empresa mataram dois
camponeses também.
Observamos que o ingresso truculento em duas escolas destinadas à
qualificação de camponeses visa não apenas criminalizar a luta pela reforma
agrária, mas a luta pela educação, tentando apresentar os locais de formação
como "refúgio de criminais" e a própria educação do campo como
"perigosa para a sociedade". Só a Escola Nacional Florestan Fernandes
oferece 70 cursos de graduação e pós-graduação conveniados com universidades
públicas. Absolutamente todos esses cursos desenvolvem produção científica
sobre a questão agrária e tecnologia agrícola de maneira mais eficiente, já que
envolvem estudantes e pesquisadores enraizados nas áreas de produção agrícola.
A ENFF é referência no mundo em ensino, pesquisa e extensão.
Desconfio que as ações ineficientes, do ponto de vista do objetivo
propalado, visavam outro fim não explicitado: dar a entender que as escolas com
finalidade formativa escondem "bandidos". Isto acontece num contexto
de tentativas de contrarreforma da educação pública, projetos de emenda
constitucional que retiram recursos públicos para a educação, uma campanha
contra a gratuidade do ensino superior público, as tentativas de fazer da
pesquisa das instituições públicas um balcão de venda de serviços de inovação
baratos para as empresas e projetos de lei como o da "Escola sem
partido", que visa a perseguição ideológica de educadores.
De fato, os ataques à educação pública abrem um grande campo de negócios
para a "privatização fatiada" do ensino público. A contrarreforma do
ensino médio também visa a formação de força de trabalho flexível, isto é,
precarizada. Mas todo esse complexo de propostas também pretende reduzir a
resistência crítica a um projeto de nação desnacionalizada, que atenda apenas
as demandas do polo externo da economia, que vê nosso território como um espaço
de produção de commodities e reserva de força de trabalho barata, mesmo quando qualificada.
Por esse motivo, estou agora de saída para a Escola Nacional Florestan
Fernandes, para um ato de desagravo à escola, em oposição aos procedimentos
fora da legalidade realizados por agentes de instituições do Estado, mas também
como educadora, para sustentar com o corpo os valores civilizatórios que
respaldam a ciência que ensino.
Silvia Beatriz Adoue