O jornalista Audálio Dantas foi se juntar a Alberto Dines e outros (cada vez menos) símbolos do bom jornalismo neste país. Morreu vítima de um câncer na quarta, 30.mai.2018.
Minha admiração por ele começou no final dos anos 70, quando ele presidiu o sindicato do jornalistas (eu ainda não exercia a profissão, mas ela já me fascinava) e se tornou deputado estadual, sempre defendendo os direitos humanos, àquela época, como agora, tão atacados.
No início dos anos 2000, sem conhecê-lo pessoalmente, tomei a ousadia de lhe fazer um convite: escrever um conto erótico para um livro que estava editando (Corpos, Editora Limiar). Ele achou bizarro e divertido o convite: "dizem que eu nem trepo, quanto mais escrever sobre isso", brincou e quis conversar pessoalmente antes de responder ao convite.
O desfecho dessa conversa foi um conto com uma das marcas peculiares de Audálio Dantas: o olhar humano do repórter sobre uma situação.
Sobre o conto, Betty Midlin escreveu à época na Folha de S. Paulo: "No conto de Audálio Dantas, que abre o livro, um operário pendurado no espaço, sentado numa cadeirinha suspensa por cordas, conserta esquadrias de um prédio. Por uma janelinha aberta surpreende uma mulher no banho. Por iniciativa dela, vista por ele como um demo metamorfoseado em formosura, os dois têm o contato amoroso que é possível nesta incômoda situação nos ares, por tão exígua passagem sobre o abismo.
O quadro é o da construção urbana e da exploração do
trabalho; e no entanto, o enredo evoca, pela atração sensual imediata por um
desconhecido atrás dos muros, um mito indígena muito parecido, dos Tuparis ou
dos Macuraps de Rondônia, em que um amante enfia a mão pela parede de palha da
maloca e acaricia uma mulher casada. Ela não o vê, apenas sente a habilidade do
braço e dos dedos, não sabe que ele é um fantasma, julga que é seu namorado
real, mas à medida que os dias passam, vai crescendo seu pinguelo, objeto dos
afagos noturnos, até atingir proporções descomunais e tornar-se um problema para
todos.[1]
Estranha semelhança do imaginário, através dos tempos e da distância...
Voltamos a nos encontrar ao passar dos anos e a pensar outros projetos em comum, que, infelizmente, não ocorreram.
Salve Audálio, grande mestre do ofício de transformar reportagens em histórias humanas.
Como homenagem e ele, e presente a todos, reproduzo abaixo o conto que consta no livro Corpos.
Sob o sol da manhã
(Audálio Dantas)
Lá está dependurado, em que
altura não importa, pode ser o décimo ou o sétimo andar, tanto faz, é assim
todos os dias, se não falta serviço. O serviço de raspar paredes envelhecidas,
de cima para baixo, primeiro, para depois refazer o mesmo caminho, passando
uma, duas demãos de tinta.
No começo tinha sido difícil
aprender aquelas lições de abismo, dava um grande frio na barriga, a descida em
sobressaltos, a vida pendurada em cordas pendentes do alto dos edifícios. Não dava
para olhar para baixo, o mundo escurecia sob a cadeira que o sustinha sobre o
abismo. Depois, aos poucos (era preciso), foi aprendendo a viver pendurado
naquelas cordas como se fosse uma aranha a fiar e a tecer a teia.
Agora, ali, no décimo (ou já
será o sétimo?) andar. Vem descendo na raspagem, serviço iniciado no vigésimo
andar, já está no meio do caminho, ou mais. Vem na linha dos banheiros, no lado
mais fácil de trabalhar, o que não tem muitas janelas, tem só as áreas de
serviço. E aqueles vitrozinhos basculantes dos banheiros, de vidro fosco. Ali o
trabalho tem de ser mais apurado, a raspagem é mais demorada nas laterais da
abertura na parede, nos cantos, no parapeito. Às vezes, conforme a posição da
vidraça, é preciso ajustá-la. É uma operação simples, basta uma leve pressão na
esquadria, para cima ou para baixo. Mas uma operação delicada pode assustar as
pessoas lá dentro ou, pior, levá-las a pensar que estão sendo espionadas.
Espionar não é fácil, nem ele tenta, é problema, é risco de perder o serviço.
De vez em quando, é verdade, escapa uma ou outra olhada furtiva para dentro, de
passagem, nada de parar, demorar em observações perigosas. Quem está dentro,
quem mora nestas alturas é gente rica, gente que pode.
Vem descendo, pensando essas
coisas na passagem por mais um vitrozinho, mais devagar do que precisa para
fazer o serviço. Aciona a manivela da cadeirinha, volta a subir, vai além do
ponto desejado e vê, de relance,
que falta um bom pedaço de vidro fosco. Não consegue dominar a curiosidade, maneja
com mais cuidado a manivela para fazer o curto caminho de volta. O retângulo
sem vidro permite a entrada da luz forte e crua do sol. De passagem, seu olhar
vai junto, penetrando, num instante tímido. É um olhar arrancado do escuro
do pensamento, no qual o diabo certamente estará, no mais profundo, remexendo,
como costuma fazer com as fraquezas da gente.
Aquele buraco no vidro fosco
do vitrozinho. Mesmo sem ousar parar diante dele, retarda os movimentos e na
passagem lança um olhar mais fundo, retém a imagem lá de dentro, difusa, os
contornos do busto nu, a água a escorrer, brilhando. Visão rápida, nervosa,
como se estivesse colhendo uma fotografia proibida. Continua a subir, a imagem
sai de seu campo de visão. Hesita antes de descer e se recolocar em posição
mais favorável. Dá para ver, agora, com mais precisão, a maravilha dos seios
brancos arrematados de cor-de-rosa nos bicos. Tem a impressão, não, tem a
certeza de que eles estão mais próximos do vitrozinho, quase ao alcance da mão.
A mão acaricia, na ponta dos
dedos, os bicos rosados. Mão fina, dedos longos, mais longos ainda por causa
das unhas vermelhas muito compridas que parecem ferir a carne branca.
Ela havia se chegado, sim,
para mais perto do vitrô. Aquele corpo lá fora, visto em partes, subindo e
descendo, as pernas dependuradas, as coxas unidas no espaço apertado da
cadeirinha, o peito marcado pela camiseta suja e sem cor definida, empapada de
suor, as mãos fortes agarrando à manivela, o rosto impreciso, em rápidas
passagens. O vidro quebrado. Aquele buraco permite essa observação fragmentada,
nervosa, às vezes interrompida por culpas momentâneas. Uma situação absurda, um
desejo de ver mais, um desejo que cabe muito bem num filme de Buñuel – ah, os
obscuros objetos do desejo.
Aquele vidro quebrado, ela
vinha reclamando havia tempo, cobrando uma providência do marido; por onde
andará ele agora, a essa hora quente da manhã? ele disse que iria visitar
clientes, almoçaria fora, não sabia a que horas voltaria ao escritório nem para
casa, talvez tivesse de jantar com outros clientes. Tem sido assim ultimamente,
com freqüência cada vez maior. Repetidas mentiras, ela sabe.
Mãos nervosas, os dedos
deslizam pela carne rija dos seios, descem rápidas pelo ventre, aquela hipótese
de barriga que é o mínimo que toda mulher deve ter. (Ela revisita os versos de
Vinícius de Morais.) Num instante acariciam os pêlos molhados, pequenas
protuberâncias, buscam entrefechadas profundezas.
De quem são aquelas mãos lá
fora a ferir com uma espátula a tinta envelhecida do parapeito da janela? Mãos
fortes, escuras de sol, aquelas mãos de operário de Portinari, as partículas de
tinta grudadas no suor.
A mão branquinha, os dedos
finos, as unhas, garras vermelhas sobre o montezinho redondo do seio. Percebe o
jogo, se arrepia. Mulher tem artes do demo, ele sabe, sente que aquela boniteza
toda está sendo mostrada de propósito. Ou será o próprio demo lá dentro do
banheiro? O demo, o cão que também está lá dentro do peito dele, remoendo. De
suas presepadas sempre ouviu falar, desde meninozinho, no sertão de onde veio
para ganhar a vida, nunca pensou que fosse daquele jeito, balançando na ponta
de uma corda.
O demo ali, tresmudado em
formosura, se amostrando em doces visões através de um buraco. Desprega o olho,
pensa em descer, seguir seu trabalho, sua sina. Mas está preso, mais amarrado
do que sua vida naquela cadeirinha. Bem que tenta escapar, repensando os
conselhos de sua gente mais velha, daqueles que sabem das artes do tinhoso.
Bonitas artes, ele vê: a mão
branquinha escorrega na espuma, vem lá de cima, descendo devagar pelo pescoço,
demora-se sobre o seio, em concha, escondendo o biquinho cor-de-rosa que depois
prende entre os dedos indicadores e polegar. Na posição em que está, ele não
consegue ver a outra mão, mas sabe onde ela está, segue-a no pensamento,
enquanto seu corpo todo treme num arrepio bom.
Do corpo ainda vê parte do
tronco, do peito para baixo, até os joelhos. A mão forte empunha a espátula,
raspa a tinta que já não existe no parapeito. Se quiser, pode tocá-la, quase faz
isso, mas recua, sente-se desconfortável naquela situação, não faz sentido
aquilo, é nonsense, um corpo dependurado, nem sabe de quem, como objeto do
desejo que tenta aplacar com as próprias mãos. Precisar, não precisa, ainda
ontem, no vernissage, tinha se esquivado de palavras e olhares ansiosos, nem
umas nem outros percebidos pelo marido ali perto, mas distante.
Agora, aquela ânsia.
Compara-se a uma cadela daquelas enfeitadinhas, que correm no cio em busca do
primeiro cão da rua. É isso mesmo, uma cadela; é bom, o sangue corre quente,
faz tremer seu corpo todo, faz mais inquietos os dedos que se agitam dentro da
carne úmida. Não faz nada para deter o gesto da própria mão em busca da outra,
aquela que se demora lá fora, no parapeito, a sustentar uma espátula
desnecessária.
Um tremor ainda maior. Na
posição em que está, a cadeirinha rente ao parapeito, não pode ver o bonito lá
de dentro, aquelas formas que podia até ter sido torneadas pelo diabo, mas não
foram não, beleza assim não podia ser arte do coisa feia. A mão branquinha está
pousada sobre a sua, um pouco molhadinha, até com um resto de espuma – ai, que
delícia as unhas vermelhas arranhando de leve, coisa tão bonita e boa só pode
ser arte de Deus.
Devagar, ondulando, a mão
branquinha avança na direção de sua coxa.
O corpo colado à parede, na
cadeirinha em posição lateral. Toca de leve a carne dura e escura, troca
arrepios. As garras arrematadas de vermelho, crispadas colhem a presa.
Contém-se para não cravá-las na carne toda oferecida, os dedos passeiam entre o
joelho e a bainha da bermuda barata e toda suja de poeira e tinta, ergue um
pouquinho o pano, descobre a pele mais clara, intocada pelo sol de todos os
dias.
As garras tremem, a carne
sob elas também. Avançam, buscam avidamente um zíper. A mão grande e forte e
escura pousa sobre as garras vermelhas, numa carícia imensa. A suave mão do
operário de Portinari. Ou será a de um vaqueiro de Guimarães Rosa? A fúria de
cadela no cio não deixa que se detenha em considerações desse tipo,
Frescuras de burguesinha
sem-vergonha, isso sim.
Os dedos percorrem a carne
rija, poderoso macho exposto ao sol da manhã.
Um arrepio imenso, maior do
que o que o assombrara na primeira vez em que se debruçou sobre o abismo. A
cadeirinha, sua prisão de cada dia, balança na ponta da corda, ele junto, num
doce estremecer. O medo vencido, só prazer, a mão branquinha ali, uma caricia
nunca antes imaginada. Um susto, de repente a mão branquinha se recolhe, deixa
a carne em frêmito e desamparo. Mas logo está de volta (mulher tem artes do
demo), empapada num creme que rebrilha ao sol, faz-se concha e colhe, ávida, a
presa.
O corpo nu, entregue, dedos
da outra mão branquinha em carícias na carne da própria carne, em desvãos,
profundezas, vertigem.
Lá fora, o pulsar e o calor
da presa que deseja para sempre ser dominada pela mão tão branquinha e sem
inocência.
A mão branquinha, os dedos,
as unhas vermelhas, o céu azul, céu fundo, profundo, sem começo nem fim. A
cadeirinha sobe num solavanco, vai para muito além do último andar, já não se
sustém pela corda, navega em nuvens.
Agora,
ai, agora despenca no abismo, numa queda sem fim, mergulha num mar de líquido
branco e espesso.
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