Conheci Ana em 2006, ela veio me
procurar para editar o livro de poesia de seu filho, Mauro, me contou, quase em
confidência e com certo embaraço, que ele sofria de alguns distúrbios e que a
edição de seus poemas poderia ser benéfica para o processo terapêutico do
filho. Expliquei-lhe sobre as dificuldades de comercialização de poesia, questionei
se isso não poderia gerar mais ansiedade e ter efeito contrário ao desejado
inicialmente. Ela reafirmou o desejo seu e de seu filho de ver as poesias
editadas. Soube, depois, que Mauro sofria de esquizofrenia.
Os poemas tinham qualidade,
apesar da irregularidade; escrevi a orelha de apresentação,
organizamos um lançamento, Mauro estava radiante, nervoso e confiante em seu
trabalho, Ana parecia feliz. Ficou com a maioria dos exemplares da edição e
pretendia levar o filho para saraus e eventos literários. O livro, Maura Escritura (Ed. Limiar).
Buscava, pela arte, a cura que a
ciência lhe negava. Ana dedicava sua vida a cuidar do filho.
Anos depois ela me procurou para
editar outro livro, de qualidade bem inferior, mas dentro do mesmo espírito de
dar vazão ao processo criativo.
Nos falamos pela última vez em
abril, ela dizia que o filho acreditava que seus livros vendiam 100 mil
exemplares por mês e ela, a mãe, ficava com o dinheiro. Queria que eu
conversasse com Mauro para explicar que ver a referência de seu livro em algum site não era sinônimo de vendas.
Não houve tempo para essa
conversa, no dia 3 de agosto Mauro teve um surto e assassinou sua mãe em sua
residência.
Ana Canônico, mulher forte de
olhar triste, era guerreira de uma única batalha: salvar o filho de seus
próprios demônios. Ambos perderam.
Reproduzo, a seguir, uma poesia
de Mauro, publicada no livro Maura
Escritura.
Obsessão
Dos anjos um ser profano
eu vi o diabo
criador da mentira com engano
o ser do profeta tirano
fazendo rima ao som do dano
pra música vil e leviana
velar a quem se dana
se ao ver o horizonte o adorasse
faria ao meu fruto soberano
e pedi então que num momento ele
passasse
a rota do passar dos anos
que à sua vista já estava se
movendo
e a causa dos meus dissabores
e ele disse que se muito funda e
falsa
solta a alça de terrores
e depois os desenlaça
mas o vi na encruzilhada
dizendo ser um santo
e da palavra ao ar roubada
transformá-la em espanto
e ao sabor de suas oferendas
falou da causa das contendas
e do tom em obscura magia
que à inveja ele fazia
e do rodear a Terra à sua via
do descanso dos hipócritas
fazer peso à hipocrisia
que se transfigurando leva
escrituras
aos santuários para os adentrar
e com Deus aí travarem lutas
que num raio à Terra o fez chegar
ao poder sua mente
ver ao cigarro e cachaça
lhe dar prazer no que aos outros
embaraça
perguntei de algum vão nele
escondido
no relincho à sua gargalhada
e onde mora o perigo
da sua paixão desvirtuada
por uma bruxa conhecida
que lhe deu uma vassourada
quando eu gastava em drogas meu
dinheiro
por que não me deu aviso de
primeiro
e como a loucura por inteiro
faz ao órgão obstruído
mas ele foi ao nada
e ainda hoje ouço
o eco de sua risada
e lembro do relance do céu onde
vivia
não há dinheiro
não há vida
eu não preciso do seu conselho
leve meu dinheiro
leve minha vida
eu não preciso do seu conselho
foda-se seu dinheiro
foda-se sua vida
eu não preciso do seu conselho
apenas loucura e obsessão.
Um comentário:
Obrigada pelo lindo post. Isso mostra mais sobre a batlha de Ana e os conflitos que ela e Mauro viviam... "os demônios que enfrentaram".
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